Ser quem somos

Ser quem somos e nos conhecermos, aponta pelo menos duas vertentes distintas. Uma transcendente, na qual somos algo que nos iguala e nos aproxima da fonte da vida, com independência de seus registros. Trata-se da vertente espiritual. É o Ser. Nela estamos confiados e entregues a algo maior que o eu. A outra é a vertente da identidade que encarnamos no mundo, da personalidade que criamos e da qual necessitamos para viver. Nela nos sentimos seres individuais com data de nascimento, filiação, propriedade, consciência do eu, projeto e destino e ideia de um fim pessoal do qual não sabemos data nem hora, mas do qual temos clareza. Nessa identidade convivem a esperança, a alegria e o anseio junto com a tristeza e a desesperança. É o espaço das preferências e sentimentos. É a trama do viver e de se responsabilizar pela própria vida.

Essa identidade é um veículo; nos permite ir aqui e ali e nos abre caminhos na vida. Essa identidade nos expande, nos engrandece e nos localiza. Passamos de filhos a esposos e pais, de alunos e aprendizes a professores, ou trocamos de papéis e funções para nos localizarmos no contexto que toque. No entanto, ela também pode ser uma prisão que nos limita, quando nos imobiliza na inflexibilidade de ter de ser de certa maneira. Então, em vez de nos expandirmos, nos retraímos. Permanecemos em posições estereotipadas, sempre filhos ou sempre professores ou sempre seguros ou sempre simpáticos. A melhor identidade e, portante, o melhor veículo são aqueles flexíveis, adaptáveis e conectados às exigências e necessidades da realidade, do momento e dos contextos. Em ajuste criativo com o entorno, tal como expressa a teoria da terapia Gestalt. Em certos contextos podemos ser pais; em outros, filhos; em alguns, seguros e expansivos; em outros, apavorados.

Desde pequenos aprendemos o que nos é conveniente. Aprendemos que é melhor ser de certa maneira, dar certa feição à vida. Assim, nos sentíamos mais seguros e queridos, por exemplo, quando nos comportávamos de uma maneira da qual nossa família ou nossos pais gostavam, ou quando éramos como eles. Sem nos darmos conta disso, aprendemos a apostar em certos valores, crenças, condutas e formas de vida. Alguns inconscientemente disseram: sinto-me melhor quando sou obediente, ou rebelde, ou quando me queixo ou choro, ou me mostro tímido e não faço barulho, ou lidero, ou sou perfeito… E assim fomos construindo certa identidade. Um traje adequado para abrir caminho, para ter um lugar.

Às vezes escutamos alguém dizer “sou fraco” ou “sou forte”, sou assim ou assado. Quando faz essas afirmações, o indivíduo tenta se estender como uma ideia de si próprio, mas, por outro lado, limita-se, se contrai nessa mesma ideia de si. A principal tarefa na vida é estender-se em todas as direções, reconhecer-se em todas as partes. Isso é crescimento. Por isso, muitas vezes é necessário mudar e deixar os limites estreitos marcados pela identificação com certas características de nossa personalidade para alcançar o desenvolvimento desejado. A vida precisa de força em certos momentos e contextos, e da debilidade em outros, tanto da ternura como da rigidez, tanto da inteligência em certas coisas como da ignorância em outras. Assim, a identidade se estende em todas as direções. Enraizada no Ser em estado puro e sem forma, uma espécie de ponto zero a partir do qual se revelam todas as manifestações e registros. […]

Assim aqueles que desejam ter um perfil muito definido e constante, estável, correm o risco de se converter em máscaras de si próprios. Ao contrário, aqueles que cultivam a arte da flexibilidade parecem sempre novos, criativos, surpreendentes e ajustados ao que requer cada momento.

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