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Caminho da alma

Como digo, passamos o tempo criando um universo de afeições e fobias, temores e fervores, amores e ódios. Isso é feito mediante três ferramentas principais: a avaliação, a comparação e o juízo. Fabricamos o adorno necessário com toda a gama de emoções e paixões humanas: inveja, zelo, medo, pesar, tristeza, reclamação, exigência, enfado, ressentimento, culpa, vergonha, vitória, esperança, etc. Quem faz isso? Nosso ego, nosso caráter, aquilo que cremos ser.

Como seres individuais, costumamos unificar uma torre de refúgio para observar a vida e o transcorrer das coisas. Dali observamos o mundo e o encobrimos ou o iluminamos com nossas ideias a respeito de como devem ser as coisas para nos assegurarmos de que sejam como devem ser, e então podemos nos alegrar ou sofrer quando não é assim. É humano: que alegria quando as coisas são como desejamos, e que pena quando nos trazem frustração e nos contrariam! É o vaivém da vida. Todavia, esse modo de funcionar é pequeno e restrito, demasiado dependente dos caprichos da vida. É a fonte do sofrimento, nos deixa doentes e nos afasta do assentamento na Grande Inteligência. Em vez de olhar a beleza intrínseca de todas as formas da vida, nos horrorizamos diante de algumas e nos embevecemos frente a outras. O tirano, também chamado ego, vive dentro. O ego não é a maior das prisões, a escravidão mais velada e mais querida, a que menos estamos dispostos a questionar? Pois resulta que, como veremos, ser livre significa sê-lo de nós mesmos.

Assim é difícil escapar desse lugar que diferencia o bem e o ma. É o que nos toca como seres humanos, enquanto não despertamos. A boa notícia é que o mesmo instrumento, que nos afasta do paraíso, ou seja, a consciência que despedaça o mundo com seu bisturi conceitual, pode se desenvolver, amadurecer e chegar a nos avisar de nossa queda. E não só isso, mas também evitar nossa angústia e separação da vida natural. Quando isso acontece, quando recebemos esse aviso, dispara-se a primeira flecha em direção ao nosso despertar.

Tenho a suspeita de que a própria consciência inclui em si mesma a função de desmascarar o conceitual e encara-lo como é: uma ilusão, uma falsidade e um limite. A atenção onde a consciência diferencia e constrói conceitos é o que permite questioná-los e, talvez, colocar um fim. A consciência, percebendo a si mesma, pode potencialmente vislumbrar que seus intentos por criar um mundo próprio por meio de um sem-fim de imagens mentais a impede de encontrar o mundo real. Pois só um eu que alcança sua plena força é capaz de desnudar-se, suportar o tormento de que vão morrendo os personagens com os quais havia se identificado recorrer o verdadeiro caminho espiritual: chegar a ser ninguém. […]

Porque a meta do eu é desvanecer-se, dissolver-se nas águas do doce esquecimento, igual à do corpo. Alguns podem viver e reconhecer enquanto ainda permanecem na vida. Então já não gritam ao universo: “Eu existo!”. Guiados por uma profunda sabedoria que lhes faz felizes, sussurram a si mesmos: “Na realidade eu não existo, porém a vida canta em mim por algum tempo”.

Joan Garriga

(trecho extraído do livro “Viver na Alma: Amar o que é, amar o que somos e amar os que são”)

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